domingo, 21 de outubro de 2007

WALTER BENJAMIN - Sobre Alguns Temas de Baudelaire

Baudelaire confiava nos leitores que encontram dificuldades na leitura da lírica. A estes leitores, é dirigido o poema inicial das "Fleurs du Mal". Não se vai longe com sua força de vontade, nem com sua capacidade de concentração; esses leitores preferem os prazeres sensíveis e estão entregues ao spleen, que anula o inte­resse e a receptividade.

Surpreende encontrar um lírico que se dirija a semelhante público — o mais ingrato. Logo após apresenta-se uma explica­ção: Baudelaire desejava ser compreendido; por isso dedica seu livro àqueles que se assemelham a ele. A poesia, dedicada ao leitor, termina apostrofando-o! "Hypocrite lecteur, — mon sem-blable, mon frèrel", Mas a relação manifesta-se mais fecunda em conseqüências, se é invertida, e se diz: Baudelaire escreveu um livro que tinha, em princípio, escassas perspectivas de êxito imediato. Confiava naquele leitor descrito no poema inicial. Com­provou-se que sua visão era de grande alcance. O leitor ao qual se dirigida, apareceria na época seguinte. Que esta seja a situa­ção, em outras palavras, que as condições de acolhimento de poe­sias líricas se tenham tornado menos propícias, é coisa provada, pelo menos por três fatos. O primeiro, o lírico não é considerado mais como o poeta em si. Não é mais "o vate", como ainda o era Lamartine; agora se fez um gênero. (Verlaine faz com que esta especialização se torne tangível; Rimbaud já é um esotérico que, ex officio, mantém o público afastado de sua própria obra). Um segundo fato: depois de Baudelaire a poesia lírica não regis­trou nenhum êxito popular. (A lírica de Hugo teve, todavia, ao aparecer, uma grande repercussão. Na Alemanha o "Buch der Lieder" marca o limite). Disto se pode deduzir um terceiro ele­mento: o público tornou-se mais frio, inclusive quanto àquela poe­sia lírica do passado, que lhe era conhecida. O espaço de tempo em questão pode datar-se, mais ou menos, da 2.a metade do século XIX. No mesmo período a fama das "Fleurs du Mal" aumentou, sem interrupção. O livro que havia confiado nos leitores mais es­tranhos, e que em princípio encontrara poucos aptos a compre­endê-lo, no curso de decênios, converteu-se num clássico, inclusive um dos mais editados.

Visto que as condições de recepção para a poesia lírica tor­naram-se mais pobres, pode-se deduzir que a poesia lírica, só de forma excepcional, conserva o contato com os leitores. E isso po-der-se-ia atribuir ao fato de que a experiência dos leitores se tenha transformado em sua estrutura. Esta conjectura será talvez apro­vada, mas nos veremos em dificuldades para definir esta transfor­mação. Neste campo devemos interrogar a filosofia, e nela, achare­mos um fato sintomático. Desde fins do século passado, a filoso­fia tem realizado uma série de tentativas para apossar-se da "ver­dadeira" experiência, em oposição àquela que se sedimenta na existência controlada e desnaturalizada das massas civilizadas. Cos­tuma-se enquadrar estas tentativas sob o conceito de "filosofia da vida". Naturalmente, estas tentativas não nascem da existência do homem em sociedade, mas sim da poesia, bem como da natureza e, preferencialmente, da época mítica. Neste sentido a obra de Dilthey, "Vida e poesia", é uma das primeiras da série que termina com Klages e Jung, que se dedicou ao fascismo. Como um monu­mento, imponente, destaca-se, entre esta literatura, a obra jovem de Bergson "Matière et Mémoire". Este livro conserva, mais que qualquer outro, sua relação com a investigação exata. Está orien­tado pela biologia. Seu título diz, antecipadamente, que nele se considera a estrutura da memória como decisiva para a experiên­cia. Realmente, a experiência é um fato de tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. A experiência não consiste preci­samente com acontecimentos fixados com exatidão na lembrança, e sim, em dados acumulados, freqüentemente de forma inconsci­ente, que afluem à memória. Mas Bergson não se propõe, de modo algum, à especificação histórica da memória. Inclusive não aceita qualquer determinação histórica da experiência. Desta forma evita sobretudo, e essencialmente, ter que se aproximar da experiência da qual surgiu sua filosofia ou, melhor dizendo, contra a qual ela surgiu. É a experiência hostil, ofuscante, da época da grande in­dústria. O olho que se fecha ante essa experiência, enfrenta uma experiência de tipo complementar, como se fosse, por assim dizer, sua imitação, espontânea. A filosofia de Bergson é uma tentativa de especificar e fixar essa imitação. Portanto, a filosofia de Bergson reconduz indiretamente à experiência que se oferece a Baudelaíre sem disfarces, na figura de seu leitor.

II

"Matière et Métnoire" define o caráter da experiência da durée de tal forma, que o leitor deve dizer-se: apenas o poeta pode ser o sujeito adequado de uma experiência semelhante. E foi, com efeito, um poeta que pôs à prova a teoria bergsoniana da experiência. Pode-se considerar a obra de Proust, "À 1a Recherche du Temps Perdu", como a tentativa de produzir artificialmente, nas atuais condições sociais, a experiência tal como a entende Bergson. Pois, resultará sempre mais difícil contar a respeito de sua gênese espontânea. Proust, ademais, não se omite em sua obra à discussão deste problema. Introduz de tal forma um ele­mento novo, que contém uma crítica imanente a Bergson. Este, não deixa de sublinhar o antagonismo entre vira activa e a par­ticular vira contemplativa revelada pela memória. Não obstante para Bergson, parece que o fato de encarar a atualização intuitiva do fluxo vital é assunto de livre escolha. A convicção diferente de Proust já se prenuncia na terminologia. A métnoire purê da teoria bergsoniana converte-se nele em mémoire involontaire. Desde o começo Proust confronta esta memória involuntária com a vo­luntária, que se acha à disposição do intelecto. Esta relação é es­clarecida nas primeiras páginas da grande obra. Na reflexão em que tal termo é introduzido, Proust fala da pobreza com que se ofe­recia à sua lembrança, durante muitos anos, a cidade de Combray, embora nela houvesse passado uma parte de sua infância. Antes que o gosto da madeleine (biscoito), ao qual volta com freqüên­cia, o transportasse uma tarde aos antigos tempos, Proust limitara-se ao que lhe proporcionava uma memória disposta a responder ao chamado da atenção. Essa é a mémoire volontaire, a lembran­ça voluntária da qual se pode dizer que as informações que nos proporciona sobre o passado, não conservam nada dele. "O mesmo vale para nosso passado. Em vão tentamos rememorá-lo; todos os esforços de nosso intelecto são inúteis". Por isso Proust não vacila em afirmar como conclusão que o passado se acha "fora de seu poder e de seu alcance, em qualquer objeto material (ou na sensação que nos provoca tal objeto), que ignoramos qual seja. Que encontremos este objeto antes de morrer ou que não o en­contremos jamais, depende unicamente do acaso".

Para Proust, depende do acaso a circunstância de que o indi­víduo conquiste uma imagem de si mesmo, ou se aposse de sua própria experiência. Depender do acaso em tal questão, não é, de modo algum, natural. Os fatos da vida interior do homem não têm por natureza esse caráter irremediavelmente privado, mas o adquirem unicamente quando diminui, devido a fatos externos, a possibilidade de que sejam incorporados à sua experiência. O jornal é um dos muitos indícios desta diminuição. Se a imprensa se propusesse agir de tal forma que o leitor pudesse apropriar-se das informações como parte de sua experiência, não alcançaria, de forma alguma, seu objetivo. Mas seu objetivo é outro, e o alcança. Seu propósito consiste em excluir, rigorosamente, os acontecimen­tos do âmbito no qual poderiam atuar sobre a experiência do leitor. Os princípios da informação jornalística (novidade, brevi­dade, inteligibilidade e sobretudo ausência de qualquer conexão entre notícias isoladas) contribuem para este efeito, tanto como a paginação e o estilo lingüístico (Karl Kraus demonstrou infati-gavelmente como, e até que ponto, o estilo lingüístico dos jornais paraliza a imaginação dos leitores). A rígida exclusão da infor­mação, no que diz respeito ao campo da experiência, depende, deste modo, do fato de que a informação não entra na "tradição". Os jornais aparecem em grande tiragem. Já nenhum leitor tem facilmente "algo de si" para contar ao próximo. Existe uma es­pécie de competência histórica entre as diversas formas de co­municação. Na substituição do antigo relato pela informação e da informação pela "sensação", reflete-se a atrofia progressiva da experiência. Todas estas formas se separam, por sua vez, da nar­ração, que é uma das formas mais antigas de comunicação. A narração não visa, como a informação, a comunicar o puro em-si do acontecido, mas o incorpora na vida do relator, para proporcio­ná-lo, como experiência, aos que escutam. Assim, no narrado fica a marca do narrador, como a impressão da mão do oleiro sobre o pote de argila.

Os oito volumes da obra de Proust dão uma idéia das ope­rações necessárias, para restaurar na atualidade a figura do nar­rador. Proust enfrentou o empreendimento com grande coerência. Por isso se empenhou, desde o início, na tarefa elementar de contar sua própria infância. E pesou toda a dificuldade, atribuindo ao puro acaso que sua solução fosse possível. No decorrer destas reflexões forja a expressão mémoire involontaire, que conserva as impressões da situação em que foi criada. Ela corresponde ao repertório íntimo da pessoa, isolada em todos os sentidos. Onde há experiência, no sentido próprio do termo, certos conteúdos do passado individual entram em conjunção na memória com ele­mentos do passado coletivo. Os cultos, com suas cerimônias, suas festas (dos quais, talvez, jamais se fale na obra de Proust), cum­priam continuadamente a fusão entre estes dois materiais da me­mória. Provocavam a lembrança em épocas determinadas e permaneciam como momento e motivo de tal fusão durante toda a vida. Lembrança voluntária e involuntária perdem assim sua exclusivida­de recíproca.

III

Em busca de uma definição mais concreta do que a que apa­rece na méroire de l'intelligence de Proust, como subproduto da teoria bergsoniana, é oportuno remontar a Freud. Em 1921 aparece o ensaio Além do Princípio do Prazer, que estabelece uma correla­ção entre a memória (no sentido de mémoire involontaire) e a consciência. Essa correlação é apresentada como uma hipótese. As reflexões seguintes, que a ela se referem, não pretendem demons­trá-la. Limitam-se a experimentar a fecundidade desta hipótese sobre nexos muito remotos em relação àqueles que Freud tinha presente no momento de formulá-la. É mais do que provável que seus discípulos tenham divergido a partir de nexos dessa natureza. As reflexões, mediante as quais Reik desenvolve sua teoria da me­mória, movem-se, em parte, justamente sobre a linha de distin­ção proustiana entre lembrança involuntária e voluntária. "A fun­ção da memória" escreve Reik "consiste em proteger as impressões. A lembrança tende a fragmentá-las. A memória é essencial­mente conservadora; a lembrança é destrutiva". A proposição fundamental de Freud, que é a base dessas variações, encontra-se formulada na hipótese de que "a consciência surja no lugar da marca mnemônica". (No ensaio de Freud, os conceitos de lem­brança e de memória não apresentam nenhuma diferença funda­mental de significação, no que se refere a nosso problema.) A consciência se distinguiria, então, pelo fato de que o processo da estimulação não deixa nela — como em todos os outros sistemas psíquicos — uma modificação perdurável de seus elementos, mas, por assim dizer, evapora-se no fe­nômeno da tomada de consciência.

A fórmula fundamental desta hipótese é a de que "tomada de consciência e persistência de uma marca mnemônica são reci­procamente incompatíveis dentro do mesmo sistema". Resíduos mnemônicos apresentam-se em compensação "freqüentemente com a máxima força e tenacidade, quando o processo que os deixou não chegou jamais à consciência". Traduzido para a terminologia proustiana: só pode chegar a ser parte integrante da mémoire involontaire aquilo que não tenha sido vivido expressa e conscientemente, em suma, aquilo que não tenha sido uma "experiência vivida". Acumular zelosamente "marcas duradouras como funda­mento da memória" de processos estimulantes é algo que se acha reservado, segundo Freud, a "outros sistemas", que é necessário pensar como diferentes da consciência. Segundo Freud, a consciên­cia como tal não abrigaria marcas mnemônicas. Em compensação, a consciência teria uma função distinta e de importância: a de servir de proteção contra os estímulos.

Para o organismo vivo a defesa contra os estímulos é uma tarefa, talvez, mais importante do que a recepção destes; o organismo encontra-se dotado de uma quan­tidade própria de energia e deve tender, sobretudo, a proteger as forças particulares de energia que a cons­tituem com referência ao influxo nivelador,'e portanto destrutivo, das energias demasiadamente grandes que atuam no exterior.

A ameaça proveniente dessas energias é a ameaça de choques. Quanto mais normal e habitual for o registro de choques por parte da consciência, menos se deverá temer um efeito traumático por parte dos mesmos. A teoria psicanalítica tenta explicar a natu­reza dos choques traumáticos "pela ruptura da proteção contra os estímulos". Depois dela, há o pavor, "seu significado" na au­sência da predisposição para angústia".

A investigação de Freud partia de um sonho típico nas neu­roses de origem traumática. Esse sonho reproduz a catástrofe a partir da qual o indivíduo se torna confuso. Segundo Freud, os sonhos deste tipo procuram "realizar a posteriori o controle do estímulo, desenvolvendo a angústia, cuja omissão fora a causa­dora da neurose traumática". Valéry parece pensar em algo se­melhante, e a coincidência merece ser ressaltada porque Valéry é um dos que se interessaram pela maneira de funcionamento especial dos mecanismos psíquicos nas atuais condições de vida. (Valéry soube conciliar este interesse com a sua produção poética, que per­maneceu puramente lírica, e por isso situa-se como o único autor que leva diretamente a Baudelaire).

As impressões ou sensações do homem — escreve Va­léry — consideradas em si mesmas, entram na cate­goria de surpresas, são o testemunho de uma insufi­ciência do homem... A lembrança é... um fenômeno elementar e tende a dar-nos o tempo para organizar a recepção do estímulo, "tempo que inicialmente nos faltou". A recepção dos choques é facilitada por um treinamento no con­trole dos estímulos, para o qual podem ser chamados, em caso de necessidade, tanto o sonho como a lembrança. Mas normal­mente, este training — segundo a hipótese de Freud — corres­ponde à consciência vigilante que tem sua localização em uma camada do córtex cerebral, "de tal maneira barrado pela ação dos estímulos", de modo a oferecer as melhores condições para recepção. O fato do choque ser captado e preso desta maneira pela consciência, proporcionaria ao fato que o provoca o caráter de experiência vivida, em sentido estrito. E tornaria estéril este acontecimento (ao incorporá-lo diretamente ao inventário da lem­brança consciente) para a experiência poética.

Encaramos o problema de como a poesia lírica poderia fun­dar-se numa experiência para a qual a recepção de choques con­verteu-se em regra. De semelhante poesia, esperaríamos um alto grau de consciência; além disso ela deveria sugerir a idéia de um plano em elaboração, na própria obra. Isto se adapta perfeita­mente à poesia de Baudelaire e a vincula, entre seus predeces-sores, a Poe, e, entre seus sucessores, a Valéry. As considerações feitas por Proust e por Valéry, a propósito de Baudelaire, com­pletam-se, entre si, de forma providencial. Proust escreveu um ensaio sobre Baudelaire, já superado, quanto ao seu alcance, por algumas reflexões de sua obra romanesca. Valéry traçou em Si-tuation de Baudelaire", a introdução clássica de "Fleurs du Mal". Escreve:

O problema de Baudelaire podia ser, portanto, colocado nos seguintes termos: tornar-se um grande poeta — mas não Lamartine, não Hugo, não Musset. Não digo que esse propósito fosse consciente nele; mas deveria estar necessariamente em Baudelaire — este propósito era essencialmente Baudelaire. Era sua razão de Estado.

Talvez haja estranheza em falar de razão de Estado, a propósito de um poeta. E isto implica em algo definido: a emancipação re­lativa às "experiências vividas". A produção poética de Baudelaire está vinculada a uma tarefa. Ele divisou espaços vazios e neles inseriu sua poesia. Sua obra não só se deixa definir historica­mente, como toda obra, como também foi concebida e forjada dessa forma.

IV

Quanto maior é a parte dos momentos de choque nas im­pressões isoladas; quanto mais a consciência deve estar continua­mente alerta no interesse dos estímulos; quanto maior é o êxito com que ela opera; quanto menos os estímulos penetram na ex­periência, tanto mais correspondem ao conceito de experiência vi­vida. A função peculiar da defesa em relação aos choques pode-se, certamente, definir como a tarefa de: marcar para o aconte­cimento, à custa da integridade de seu conteúdo, um lugar tem­poral exato, na consciência. Este seria o resultado último e maior da reflexão. Ela converteria o acontecimento em uma experiência vivida. No caso de funcionamento frustrado da reflexão, produ-zir-se-ia o espanto, agradável ou (mais comumente) desagradável, que — segundo Freud — sanciona o fracasso da defesa contra os choques. Este elemento foi fixado por Baudelaire numa imagem crua. Fala de um duelo no qual o artista, antes de sucumbir, grita de espanto. Este duelo é o processo mesmo da criação. Portanto, Baudelaire colocou a experiência do choque no coração de seu trabalho artístico. Este testemunho de si mesmo é da maior im­portância. E é confirmado pelas declarações de muitos de seus contemporâneos. Embora a mercê do espanto, Baudelaire não dei­xava de provocá-lo. Vallès refere-se a seus excêntricos jogos fisio­nômicos; Pontmartin salienta a expressão contida de Baudelaire, num retrato de Nargeot; Claudel insiste no acento cortante de que se servia na conversação; Gautier fala das "cesuras" que Baudelaire gostava de imprimir às suas declamações; Nadar des­creve seu abrupto andar.

A psiquiatria conhece tipos traumatófilos. Baudelaire encar­regou-se de deter os choques de onde quer que viessem, com sua própria pessoa — espiritual e física. A esgrima proporciona uma imagem desta defesa. Quando deve descrever seu amigo Cons-tantin Guys, busca-o na hora em que Paris está submersa no sono, enquanto ele inclinado sobre sua mesa, lança à folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas; esgrime com o lápis, a caneta, o pincel; faz a água do copo pular até o teto e limpa a pena da caneta na camisa apressado, violento, ativo, quase te­mendo que as imagens lhe fujam; em luta, ainda que só, e como quem se desse golpes.

Num duelo fantástico semelhante, Baudelaire retratou-se na estrofe inicial do poema Le soleil, que é o único fragmento de "Fleurs du Mal" que o mostra em seu trabalho poético:

Le long du vieux íaubourg, oú pendent aux masures Les persiennes, abri des secrètes luxures, Quand le aoleil cruel frappe à traits redoublés Sur Ia ville et les charríps, sur les toits et les blés, Je vais rríexercer seul à ma iantasque escrime, Flairant dans tous le coins les hasards de Ia rime, Trébuchant sur les mots comme sur les pavés Heurtant parfois des vers depuis longtemps revés.

A experiência do choque é uma das que se tornou decisiva para a formação de Baudelaire. Gide trata das intermitências entre imagem e idéia, palavra e objeto, onde a emoção poética de Baudelaire encontraria seu verdadeiro lugar. Rivière chamou a atenção para os golpes subterrâneos que agitam o verso baude-leriano. É então que uma palavra desmorona sobre si mesma. Rivière assinalou estas palavras vacilantes:

Et qui sait fleurs nouvelles que je rêve Trouveront dans ce sol lave comme une greve Le mystique aliment qui ferait leur vigneur.

Ou também:

Cybèle, qui les aime, augmente ses verdures.

É preciso acrescentar aqui, o célebre começo de poema:

Le servante au grand coeur dont voxis étiez jalouse.

Fazer justiça a estas leis secretas, inclusive fora do verso, é o que se propôs Baudelaire em "Spleen de Paris", seus poemas em prosa. Na dedicatória do livro ao redator-chefe da "Presse", Arsène Houssaye, ele diz:

Quem de nós não sonhou, em dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo nem rima, suficientemente flexível e nervosa para saber adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondula­ções do sonho, aos sobressaltos da consciência?... Da fermentação das grandes cidades, do crescimento de suas inúmeras relações nasce sobretudo este ideal obsecante.

O fragmento permite efetuar uma dupla comprovação. Infor­ma-nos, primeiramente, da íntima relação existente em Baudelaire entre a imagem do choque e o contato com as grandes massas citadinas. Diz-nos, também, o que devemos entender, exatamente, por tais massas. Não se trata de nenhuma classe, de nenhum corpo coletivo articulado e estruturado. Trata-se, isto sim, da multidão amorfa dos passantes, do público das ruas.3 Esta multidão, da qual Baudelaire jamais esquece a existência, não lhe serviu de modelo em nenhuma de suas obras. Porém está inscrita como figura secreta bem como é, também, a figura secreta do fragmen­to citado. A imagem do esgrimista é decifrável em seu contexto: os golpes que assenta, estão destinados a abrir-lhe um caminho através da multidão. É verdade que os faubourgs, através dos quais o poeta de "Le Soleil" abre caminho, estão vazios e desertos. Mas a constelação secreta (na qual a beleza da estrofe torna-se trans­parente até o âmago), deve ser assim entendida: é a multidão espiritual das palavras, dos fragmentos, dos inícios de versos com os quais o poeta combate, nas ruas abandonadas, sua luta pela presa poética.

V

A multidão: nenhum tema se impôs com mais autoridade aos literatos do século XIX. A multidão — grandes camadas para as quais a leitura se convertera em hábito — começava a organizar-se como público. Surgia no papel de cliente; queria — como os poderosos nos quadros da Idade Média — encontrar-se no romance contemporâneo. O autor mais feliz do século adap­tou-se, por necessidade íntima, a esta exigência. Multidão era para ele, quase num sentido antigo, a multidão dos clientes, o público. Hugo é o primeiro a dirigir-se à multidão, em títulos como: "Les Misérables", "Les Travailleurs de Ia Mer". Foi o único na França que pôde competir com o feuilíeton. O mestre deste gênero, que começava a tornar-se para a plebe fonte de uma espécie de re­velação, era, como se sabe, Eugène Sue. Sue foi eleito para o Parlamento em 1850, por grande maioria, como o representante da cidade de Paris. Não foi por acaso que o jovem Marx encon­trou a maneira de ajustar contas com "Lea myatèrea de Paris." De imediato, impôs-se lhe a tarefa de forjar a massa férrea do proletariado dessa massa amorfa, que se achava então exposta aos afagos de um socialismo literário. Desta forma, a descrição qua Engels faz dessa massa na obra da sua juventude, prenuncia, ainda que timidamente, um dos temas marxistas. Em A Situação das Classes Trabalhadoras em Inglaterra, Engels diz:

Uma cidade como Londres, onde se pode caminhar ho­ras inteiras sem chegar ao menos ao começo de um fim, tem algo de desconcertante. Esta concentração colossal, este amontoado de dois milhões e meio de homens em um só lugar, centuplicou a força destes dois milhões e meio de homens... Mas tudo isto que... isto custou, é algo que se descobre somente em seguida. Depois de haver vagabundeado vários dias pelas ruas princi­pais... começava-se a ver que estes londrinos devem ter sacrificado a melhor parte de sua humanidade para realizar cs milagres de civilização, dos quais a cidade está fervilhante; que neles permaneceram inativas e foram sufocadas cem forças latentes. .. Finalmente, o fervedouro das ruas tem algo de desagradável, algo contra o qual a natureza humana se rebela. Estas cen­tenas de milhares de pessoas, de todas as classes e de todos os tipos que aí se entrecruzam. e se comprimem, não são por acaso homens, com as mesmas qualidades e capacidades, e com o mesmo interesse de serem fe­lizes? . . . E não obstante, ultrapassam-se uns aos outros, apressadamente, como se nada tivessem em comum, nada a fazer entre si; não obstante, a única convenção que os une, subentendida, é que cada um mantenha a direita ao andar pelas ruas, a fim de que as duas cor­rentes da multidão, que andam em direções opostas, não se choquem; não obstante, a ninguém ocorre dignar-se dirigir aos outros, ainda que seja apenas um olhar. A indiferença brutal, a clausura insensível de cada um nos próprios interesses privados torna-se tanto mais re­pugnante e ofensiva quanto maior é o número de indi­víduos que se aglomeram em um espaço reduzido.

Esta descrição é nitidamente diversa das que se podem achar nos pequenos mestres franceses do gênero, tais como Gozlan, Del-vau ou Laurine. Falta-lhe a facilidade e a desenvoltura com que se move o flâneur através da multidão e que o feuilletoniste copia e aprende. Para Engels, a multidão tem alguma coisa que o deixa consternado. Ela provoca, nele, uma reação moral. A esta se acres­centa uma reação estética: o ritmo, com que os transeuntes se cruzam e se ultrapassam, o ofende profundamente. O fascínio de sua descrição reside, justamente, na forma como o incorruptível hábito crítico funde-se, nela, com o tom patriarcal. O autor vem de uma Alemanha ainda provinciana; talvez a tentação de perder-se numa maré de homens jamais o tivesse tocado. Quando pela primeira vez Hegel chegou a Paris, muito perto de sua morte, escreveu a sua mulher: Quando ando pelas ruas, as pessoas têm o mesmo as­pecto que em Berlim — estão vestidas da mesma for­ma, têm mais ou menos as mesmas caras —; a mesma cena, mas numa massa mais densa.

Mover-se no meio desta massa era, para o parisiense, algo na­tural. Por maior que pudesse ser a distância que ele, por sua pró­pria conta, pretendesse assumir frente a ela, permanecia marcado, impregnado dela, e não podia, como um Engels, considerá-la de fora. No que diz respeito a Baudelaire, a massa é algo tão pouco extrínseco, que se lhe pode seguir os rastros em sua obra, pode-se notar como ela o atrai e o prende em sua armadilha, e como ele se defende dela.

A massa é a tal ponto intrínseca em Baudelaire que em sua obra, inutilmente, se procura uma descrição dela. Como seus temas essenciais, ela nunca aparece em forma de descrição. Para ele, se­gundo diz com perspicácia Desjardins, "trata-se mais de impri­mir a imagem na memória do que dar-lhe cor e enfeitá-la". Bus-car-se-á em vão em "Lea Fleurs do Mal" ou em "Spleert de Paris" algo semelhante aos afrescos urbanos nos quais Victor Hugo era insuperável. Baudelaire não descreve a população, nem a cidade. E é justamente esta renúncia que lhe permite evocar uma na ima­gem da outra. Sua multidão é sempre a da metrópole; sua Paris é sempre superpovoada. Isto o torna muito superior a Barbier que — usando o procedimento descritivo — faz com que a massa e a cidade estejam uma fora da outra.

Em os "Tableaux Parisiens" pode-se verificar, quase sempre, a presença misteriosa de uma massa. Quando Baudelaire toma o crespúsculo matutino como tema, há nas ruas desertas algo do "si­lêncio de um formigueiro" que Hugo pressente na Paris noturna. Basta que Baudelaire pouse o olhar sobre as pranchas dos atlas anatômicos, expostas à venda nos empoeirados cais do Sena, para que em suas folhas a massa dos defuntos tome, inadvertidamente, o lugar em que antes apareciam esqueletos isolados. Uma massa compacta coloca-se em primeiro plano das figuras da "Datise Ma-cabre". Emergir da massa, com seu passo que não mais consegue manter o ritmo, com seus pensamentos que não sabem mais nada do presente, é o heroísmo das pequeninas mulheres enrugadas que o ciclo "Les Petites Vieilles" segue em suas peregrinações. A mas­sa era o véu esvoaçante através do qual Baudelaire via Paris. Sua presença domina um dos fragmentos mais famosos de "Lea Fleurs du Mal".

Nenhum circunlóquio, nenhuma palavra lembra a multidão no soneto "À une Passante". Não obstante, o processo depende da massa, assim como depende do vento a marcha de um veleiro.

La rue assourdissante autour de moi hwlait. Longue, mince, en grand deuií, douleur majestueuse, Une fetnme passa, d'tme main fastueuse Soulevant, balançant le feston et 1'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue. Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, Dans son oeil, ciei livide oú germe 1'ouragan, La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair. . . puis Ia nuit! Fugitive beauté Dont le regará m'a íait soudainement renaitre, Ne te verrai-je plus que dans Véternité?

Ailleurs, bien loin cfici! Trop tard! Jamais, peut-être! Car j'ignore oú tu fuis, tu ne sais oú je vais, O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!

Sob seu véu de viúva, velada por ser tacitamente transportada pela multidão, uma desconhecida cruza seu olhar com o olhar do poeta. O significado do soneto é, numa frase, isto: a aparição que fascina o habitante da metrópole — longe de ter na multidão ape­nas sua antítese, apenas um elemento hostil — somente pode surgir para ele da multidão. O êxtase do citadino é um amor não tanto à primeira quanto à "última vista". É uma despedida para sempre, que coincide na poesia com o instante do encanto. Assim, o so­neto apresenta o esquema de um choque, incluindo o esquema de uma catástrofe. Porém a catástrofe golpeia não apenas o su­jeito, mas também, a natureza de seu sentimento. Isto que contrai convulsivamente o corpo — "crispé comme un extravagante" — não é a beatitude daquele que se sente invadido por Eros em todos os pontos do seu ser; mas é, antes, a comoção sexual que pode surpreender o solitário. Dizer, como Thibaudet, que "estes versos só podiam nascer numa grande cidade", é ainda insuficiente. Eles fazem vir a tona os estigmas que a vida numa grande cidade inflige ao amor. Não foi de outra forma que Proust entendeu o soneto, e por isso deu à cópia tardia da mulher de luto, como lhe apareceu um dia Albertina, a alcunha significativa de "/a pa-risierme".

Quando Albertina tornou a entrar em meu quarto, tinha um vestido de cetim preto que a fazia mais pálida, tornando-a a parisienne lívida, ardente, entristecida pela falta de ar, pelo clima das multidões — e talvez pela influência do vício — e cujos olhos pareciam ainda mais inquietos por não serem avivados pelo róseo das maçãs do rosto.

Assim, ainda se vê em Proust o objeto de um amor, como ape­nas o homem citadino o conhece, conquistado por Baudelaire para a poesia e do qual se poderá dizer, freqüentemente, que o cum­primento não lhe foi tanto recusado, quanto, ao contrário, poupado.

VI

Entre as versões mais antigas do tema da multidão pode-se considerar clássica uma novela de Poe, traduzida por Baudelaire. Ela apresenta alguns elementos aos quais bastará seguir para che­gar a instâncias sociais muito potentes e secretas, para que se possam incluir entre aquelas capazes de exercer, através dos mais variados meios, uma influência, tão profunda quanto sutil, sobre a produção artística. A narrativa intitula-se O Homem da Multidão. Pàssa-se em Londres e é narrada em primeira pessoa por um homem que, depois de longa doença, sai, pela primeira vez, no tumulto da cidade.

Nas últimas horas do entardecer de um dia de outono, senta-se diante das janelas de um grande café londrino. Observa as pes­soas à sua volta e os anúncios de um jornal; mas seu olhar se volta, sobretudo, para a multidão que passa diante das vidraças da janela.

Era uma das ruas mais animadas da cidade; durante todo dia esteve cheia de gente. Mas agora, ao escure­cer, a multidão crescia de minuto a minuto; e quando se acenderam as luzes a gás, dois, comprimidos, com­pactos, rios de transeuntes cruzavam-se em frente ao café. Nunca me havia sentido em um estado de ânimo como o desta noite; e saboreei a nova emoção que me tomava frente ao oceano de cabeças em movimento. Pouco a pouco perdi de vista o que ocorria no local onde me encontrava, e me abandonei, completamente, à contemplação do espetáculo de fora.

Deixaremos de lado apesar de significativo, o infortúnio que segue a este prólogo, e nos limitaremos ao exame do quadro onde se desenvolve.

Em Poe a multidão de Londres parece tão tétrica e confusa quanto a luz de gás em que se move. Isto não é válido apenas para a gentalha que desemboca com a "noite das suas tocas". A classe dos empregados superiores é descrita por Poe, nestes termos:

Todos tinham a cabeça ligeiramente calva; e a orelha direita, habituada a sustentar a pena, estava um pouco separada do crânio. Todos, rotineiramente, se cumpri­mentavam, tocando levemente o chapéu, e traziam cur­tas correntes de ouro de modelo antigo.

Mais estranha ainda é a descrição do modo como se move a multidão:

A maior parte dos que passavam tinha o aspecto de gente satisfeita consigo mesma e solidamente instalada na vida. Parecia que pensavam apenas em abrir ca­minho por entre a multidão. Franziam o cenho e lan­çavam olhares para todos os lados. Se recebiam um encontrão dos que passavam mais perto, não se des-compunham, mas endireitavam as roupas e se apres­savam em prosseguir. Outros, e também este grupo era numeroso, moviam-se de maneira descomposta, tinham o rosto afogueado, falavam entre si e gesticulavam, como se justamente no meio da multidão incalculável que os cercava, se sentissem perfeitamente sós. Quando tinham que parar, deixavam inesperadamente de mur­murar mas intensificavam sua gesticulação, e espera­vam, com um sorriso ausente e forçado, que tivessem passado aqueles que os atrapalhavam. Quando rece­biam um encontrão, cumprimentavam exageradaments aqueles de quem tinham recebido o esbarrão e pare­ciam extremamente confusos.

Poder-se-ia supor que se trata de miseráveis, de indivíduos semi-embriagados. Na verdade são "pessoas de elevada condição, co­merciantes, advogados e especuladores da Bolsa".

O quadro esboçado por Poe não se pode definir como "rea­lista". Nota-se nele a atuação de uma fantasia que deforma cons­cientemente, o que afasta em muito um texto como este, daque­les recomendados como modelo de um realismo socialista. Por exemplo, Barbier, um dos que melhor se poderia vincular a um realismo dessa natureza, descreve as coisas de maneira menos des-concertante. Não obstante escolheu um tema mais unívoco: o da massa dos oprimidos. Desta, não se trata absolutamente em Poe: seu tema é "a gente" como tal. No espetáculo que ela oferece ele pressente, como Engels, alguma coisa ameaçadora. E é justa­mente esta imagem da multidão metropolitana a que se tornou desiciva para Baudelaire. Se por um lado ele sucumbe à violên­cia com que a multidão o atrai para si e o converte, como flâneur, em um dos seus, por outro, a consciência do caráter desumano da massa jamais o abandona. Baudelaire se torna cúmplice da multidão e quase imediatamente afasta-se dela. Mistura-se profun­damente com ela, para fulminá-la, de repente, convertendo-a em nada, com um olhar de desespero. Esta ambivalência tem algo de fascinante quando relutantemente admitida por ele; e poderia, inclusive, depender dela o encanto tão difícil de se explicar do "Crépuscule du Soir".

VII

Baudelaire quis igualar o homem da multidão — atrás de cujas pegadas o narrador de Poe percorre a Londres noturna em todas as direções — ao tipo do flâneur. Aqui não podemos segui-lo. O homem da multidão não é um flâneur. Nele, o hábito tran­qüilo foi substituído por outro, maníaco; e dele se pode inferir melhor o que aconteceria ao flâneur, quando lhe fosse tirado seu ambiente natural. Se este ambiente foi-lhe alguma vez proporcio­nado por Londres, sem dúvida não foi a Londres descrita por Poe. Em relação a ela, a Paris de Baudelaire conserva alguns traços do bom tempo antigo. Há ainda balsas para cruzar o Sena, em lugares onde mais tarde se lançariam pontes. Inclusive no ano da morte de Baudelaire, poderia ocorrer a um homem de empresa fazer circular quinhentas liteiras para uso dos cida­dãos acomodados. Já estavam na moda as passagens, onde o flâneur se refugiava da visão dos veículos, que não toleravam a concor­rência do pedestre. Havia o transeunte que se infiltrava entre a multidão, mas havia também o flâneur que necessitava de espa­ço e não queria renunciar à sua vida privada. A massa deve ocupar-se de suas tarefas: o homem privado, na verdade, pode flanar somente, quando, como tal, já sai do quadro. Onde o tom é dado pela vida privada, há tão pouco espaço para o flâneur como no trânsito febril da city. Londres tem o homem da multidão. Nante, o homem de plantão na esquina, personagem popular da Berlim anterior a 1848, é de certo modo sua antítese: o flâneur parisiense está entre os dois.

Sobre a maneira como o homem privado contempla a mul­tidão, informa-nos uma breve história, a última que E. T. A. Hoffmann escreveu, e se intitula O primo em sua janela da esquina. Foi escrita quinze anos antes da novela de Poe, e talvez seja uma das mais antigas tentativas de apresentar o re­trato das ruas de uma grande cidade. Vale a pena sublinhar as diferenças entre os dois textos. O observador de Poe olha atra­vés das vidraças de um local público, enquanto que o primo está sentado em seu próprio quarto. O observador de Poe su­cumbe a uma atração, que termina por arrastá-lo no vértice da multidão. O primo na janela está paralisado: não poderia seguir a corrente mesmo quando a sentisse sobre sua própria pessoa. En­contra-se muito mais por cima desta multidão, tal como sugere seu posto de observação em um apartamento alto. Dali de cima, passa em revista a multidão. É dia de feira e a multidão se sente em seu próprio elemento. Seu binóculo, de grande alcance, per­mite-lhe isolar cenas, típicas. A disposição interior de quem se utiliza do binóculo, está plenamente de acordo com o funciona­mento desse instrumento. O primo quer iniciar o seu visitante, tal como ele mesmo diz, "nos princípios da arte de olhar". Esta arte consiste na faculdade de deleitar-se com "quadros vivos", como aqueles em que se compraz o Biedermeier. Máximas edifi­cantes favorecem a interpretação. Pode-se considerar o texto como uma tentativa, cuja realização estava próxima. Mas é evi­dente que essa tentativa acontecera em Berlim, em condições que não permitiam seu êxito pleno. Se Hoffmann tivesse estado algu­ma vez em Paris ou Londres, se se tivesse proposto representar uma massa como tal, nunca teria escolhido uma feira; não teria dado às mulheres um lugar predominante no quadro, e talvez alcançasse os temas que Poe extrai das multidões em movimento à luz dos lampiões de gás. Mas não teriam sido necessários os lampiões para iluminar o elemento inquietante que foi notado por outros fisionomistas da grande cidade. É oportuno, neste sentido, recordar um episódio significativo de Heine.

Heine esteve muito doente dos olhos na primavera — escreve a Varnhagen, em 1838, um correspondente —. A última vez, percorri com ele os bouíevards. O esplen­dor, a vida desta rua, única em seu gênero levava-me a uma admiração sem limites, enquanto Heine subli­nhou nesta ocasião com eficácia o que há de horrível neste centro do mundo.

VIII

A multidão metropolitana suscitou nos primeiros que a olha­ram nos olhos, angústia, repugnância e medo. Em Poe a multidão tem algo de bárbaro. A disciplina, só com grande dificuldade, a freia. Posteriormente, James Ensor não se cansará de opor-lhe disciplina e selvageria. Compraz-se em fazer intervir companhias militares no meio de suas bandas carnavalescas. Ambas, encontram-se, reciprocamente, numa relação exemplar: como exemplo e mo­delo dos estados totalitários, onde a polícia está aliada aos delin­qüentes. Valéry, dotado de uma visão muito aguda para o com­plexo de sintomas que é a "civilização técnica", descreve da se­guinte maneira um dos elementos em questão.

O homem civilizado das grandes metrópoles — escreve — volta a cair num estado selvagem, isto é, em estado de isolamento. A sensação de estar necessariamente em relação com os outros, anteriormente estimulada pela contínua necessidade, embota-se pouco a pouco pelo funcionamento, sem atritos, do mecanismo social. Cada aperfeiçoamento deste mecanismo torna inúteis determi­nados atos, determinados sentimentos e emoções.

O conforto isola. Enquanto que, por outro lado, assimila ao meca­nismo seus usuários. Com a invenção do fósforo, em fins do sé­culo, começa uma série de inovações técnicas, que têm em comum o fato de substituir uma série complexa de operações por um gesto brusco. Esta evolução se produz em muitos campos; e torna-se evi­dente, por exemplo, no telefone, onde em lugar do movimento contínuo que era necessário para fazer rodar uma manivela nos aparelhos primitivos, aparece o ato de levantar o receptor. Entre os inúmeros atos de intercalar, arremessar, oprimir, etc, o "dispa­ro" do fotógrafo teve conseqüências particularmente graves. Bas­tava pressionar com um dedo, para fixar um acontecimento du­rante um período de tempo ilimitado. Esta máquina proporciona­va, instantaneamente, por assim dizer, um choque póstumo. Jun­tamente com experiências táteis desta natureza, surgiam experiên­cias óticas, como a produzida por anúncios em jornais e também pelo trânsito das grandes cidades. Mover-se através do trânsito, comporta para o indivíduo uma série de choques e colisões. Em pontos perigosos de cruzamento, fazem-no estremecer, em rápidas sucessões, nervosismos iguais às batidas de uma bateria. Baude-laire fala do homem que mergulha na multidão como num reser­vatório de energia elétrica. Define-o, logo em seguida, descrevendo assim a experiência do choque como "um caleidoscópio dotado de consciência". Se os transeuntes de Poe lançam ainda olhares sem motivo em todas as direções, os de hoje devem fazê-lo, forçosa­mente, para atender aos sinais de trânsito. A técnica subordinava assim o sistema sensorial do homem a um complexo training. Che­gou o dia em que o filme correspondeu a uma nova e urgente necessidade de estímulos. No filme a percepção por choques confirma-se como princípio formal. O que determina o ritmo da produção em cadeia condiciona, no filme, o ritmo da recepção.

Não é por acaso que Marx mostra como, no artesanato, a conexão dos momentos de trabalho é contínua. Esta conexão, tor­nada autônoma e objetivada, apresenta-se, ao trabalhador fabril, na esteira automática. A parte na qual deve trabalhar, entra no raio de ação do operário independente de sua vontade; e com a mesma liberdade lhe é retirada.

Toda produção capitalista. . . — escreve Marx — dis­tingue-se pelo fato de que não é o trabalhador a utili­zar a condição do trabalho, mas a condição do traba­lho a utilizar o trabalhador; porém só com a maqui­naria esta inversão adquire uma realidade tecnicamen­te tangível.

Em suas relações com a máquina, os operários aprendem a coorde­nar "seus próprios movimentos com aqueles uniformemente cons­tantes de uma autômata". Estas palavras lançam uma luz particular sobre a uniformidade, de caráter absurdo, que Poe atribui à mul­tidão: uniformidade de vestir e de comportamento, e não menor uniformidade de expressão. O sorriso dá o que pensar. É provavel­mente o mesmo que se tornou usual hoje com o keep smiling e atua, pode-se dizer assim, como pára-choque mímico. "Todo trabalho com máquinas exige — fala-se no fragmento anterior — um pre­coce tirocínio do operário". Este tirocínio é diferente do exercício. O exercício, decisivo apenas no trabalho manual, tinha contudo uma função na manufatura. Baseado na manufatura, "cada ramo particular de produção encontra na experiência a forma técnica adaptada a ele, e a aperfeiçoa lentamente". Cristaliza-a rapida­mente "tão logo alcança um certo grau de maturidade". Mas a mesma manufatura produz, por outro lado,

em todo o trabalho manual do qual se apodera, uma classe de operários chamados não especializados, que a empresa de trabalho manual excluía rigorosamente. En­quanto desenvolve até o virtuosismo a especialização, simplificada ao extremo, em detrimento da capacidade global de trabalho, começa a fazer uma especialização inclusive da falta de qualquer formação. Ao lado da hierarquia aparece a simples distinção dos operários es­pecializados e não especializados.


O operário não especializado é o mais profundamente degradado pelo tirocínio da máquina. Seu trabalho é impermeável à experiên­cia. O exercício não tem nele nenhum direito. O que o Luna Park executa, mediante suas rodas giratórias e outras diversões da mes­ma natureza, não é mais que um ensaio do tirocínio ao qual o operário não especializado é submetido na fábrica (ensaio que às vezes, deve converter-se para ele em programa inteiro; já que a arte de ser excêntrico, na qual o homem vulgar podia exercitar-se nos lunaparks, prosperava durante os períodos de desocupação). O texto de Poe põe em destaque a relação entre selvageria e dis­ciplina. Seus transeuntes comportam-se como se, adaptados em autômatas, não pudessem mais exprimir-se senão de maneira auto­mática. Seu comportamento é uma reação a choques. "Quando re­cebiam um encontrão cumprimentavam exageradamente aqueles de quem tinham recebido esbarrão".

IX

A experiência do choque que o transeunte sofre no meio da multidão, corresponde à do operário a serviço das máquinas. Con­tudo, isto não autoriza a supor que Poe tivesse um conceito do pro­cesso do trabalho industrial. Em todo caso, Baudelaire estava de­masiado longe de um conceito desta natureza. Porém, sentia-se fas­cinado por um processo no qual o mecanismo reflexo que a má­quina põe em movimento no operário, pode ser estudado no ocioso como em um espelho. Este processo é o jogo do acaso. A afir­mação pode parecer paradoxal. Como encontrar uma antítese mais acentuada que a existente entre o trabalho e o acaso? Alain diz com grande clareza:

O conceito... de jogo... consiste no fato de que a partida que segue não depende da que a precede. O jogo ignora, decididamente, toda posição conquistada... Não leva em conta os méritos conquistados anterior­mente. Nisto, distingue-se do trabalho. O jogo apaga... o passado importante sobre o qual se funda o traba­lho..., é um processo efêmero.

O trabalho, ao qual Alain aqui se refere, é altamente diferencia­do (o qual, como o intelectual, pode conservar certos elementos do trabalho manual); não é o trabalho da maioria dos operários das fábricas, e de nenhum modo o dos não especializados. A este últi­mo falta, é verdade, o elemento de aventura, a miragem que seduz ao jogador. Mas não lhe falta a futilidade, o vazio, o fato de não poder concluir, que é também inerente à atividade do operário assalariado. Inclusive o seu gesto, determinado pelo processo auto­mático do trabalho, se representa no jogo que não se desenvolve sem o movimento rápido de quem faz a aposta ou compra uma carta. Ao "ímpeto" no movimento da máquina, corresponde o coup no jogo de azar. Cada intervenção do operário na máquina não tem relação com a precedente, porque constitui sua exata repro­dução. Cada intervenção na máquina está tão hermeticamente se­parada daquela que a precedeu, como um coup do jogo de azar, do coup imediatamente precedente; e a escravidão do assalariado faz, de certa forma pendant à do jogador. O trabalho de ambos está igualmente vazio de conteúdo.

Há uma litografia de Senefelder que representa uma roda de jogo. Nenhum dos personagens segue o jogo da mesma ma­neira. Cada um está ocupado com sua própria paixão; um por uma alegria não contida, outro pela desconfiança em relação a seu partner, outro por um confuso desespero, outro por desejos de bri­gar, e um toma providências para abandonar este mundo. Nas di­versas atitudes existe alguma coisa de secretamente igual: os per­sonagens representados mostram como o mecanismo, ao qual os jo­gadores se entregam no jogo, apossa-se de seus corpos e de suas almas, pelo qual inclusive em seu foro íntimo, por forte que seja a paixão que os agite, não podem atuar senão automaticamente. Comportam-se como os transeuntes do texto de Poe; vivem uma vida de autômatos e assemelham-se aos seres imaginários de Bergson, que liquidaram, por completo, sua memória.

Não consta que Baudelaire se dedicasse ao jogo, apesar de ter encontrado para suas vítimas palavras de simpatia, inclusive de res­peito. O tema que tratou em seu poema noturno "Le Jeu", devia servir, segundo sua compreensão, para definir os tempos modernos. Escrever esse poema, era parte de sua tarefa. A figura do joga­dor constitui em Baudelaire a integração tipicamente moderna da figura arcaica do espadachim. Ambos são, para ele, personagens igualmente heróicos. Bõrne via com os olhos de Baudelaire ao escrever:

Se se poupasse... toda a força e toda a paixão. . . que se esbanja cada ano na Europa nas mesas de jogo... bastaria para fazer um povoado romano e para construir uma história romana. Mas, é assim!: ainda que todo homem nasça romano, a sociedade burguesa busca desromanizá-lo, e com esse objetivo são introduzidos os jogos de azar e de salão, os romances, as óperas italia­nas e os jornais elegantes.

Na burguesia, o jogo de azar aclimatou-se, somente, no decorrer do século XIX; no século anterior jogava, exclusivamente, a no­breza. O jogo de azar foi difundido pelos exércitos napoleônicos e passou a ser parte do "espetáculo da vida mundana e de milha­res de existências irregulares que circulam nos subterrâneos de uma grande cidade": o espetáculo no qual Baudelaire via o he­róico "tal como é próprio de nossa época".

Se considerarmos o jogo de azar não tanto do ponto de vista técnico quanto do psicológico, a concepção de Baudelaire parece ainda mais significativa. O jogador visa à ganância: isto é claro. Porém seu gosto de vencer e de fazer dinheiro não podem ser definidos como desejo, no sentido estrito da palavra. Isto que o ocupa intimamente, é, provavelmente, cupidez, provavelmente, uma obscura decisão. De qualquer modo, encontra-se num estado de ânimo no qual não pode acumular experiência. O desejo em troca, pertence à ordem da experiência. "O que se deseja de jo­vens, tem-se em abundância de velhos", diz Goethe. Quanto mais cedo se formula um desejo na vida, tanto maiores são suas pers­pectivas de cumprir-se. Quanto mais longe no tempo se encontra um desejo, tanto mais se pode esperar sua realização. Mas o que o leva longe no tempo é a experiência, que o completa e o arti­cula. Por isso o desejo realizado é a coroa reservada à experiên­cia. No simbolismo dos povos, a distância espacial pode ocupar o lugar da distância temporal; por isso a estrela cadente, que se precipita na infinita lonjura do espaço, converte-se no símbolo do desejo realizado. A bolinha de marfim que roda no próximo número, a próxima carta, que está em cima do monte, são a verdadeira antítese da estrela cadente. O tempo contido no instante em que a luz da estreia cadente brilha para o olho humano, é da mesma natureza daquele que Joubert, com sua habitual segurança, defi­niu como: "Há um tempo — diz — inclusive na eternidade; mas não é o tempo terrestre, o tempo mundano... É o tempo que não destrói, somente realiza". É a antítese do tempo infernal no qual transcorre a existência daqueles a quem não é dado chegar a concluir coisa alguma do que começaram. A má reputação do jogo depende justamente do fato de que é o jogador mesmo, o que põe sua mão na obra. (Um freguês incorrigível da loteria não incorrerá na mesma condenação da que é passível o verdadeiro jogador de azar).

O fato de começar sempre de novo é a idéia reguladora do jogo (como do trabalho assalariado). Tem pois um sentido muito preciso, que a agulha que marca os segundos — Ia seconde — fi­gure em Baudelaire como o partner do jogador:

Souviens-toi que le Temps est um joueur avide qui gagne sans tricher, à tout coup! c'est Ia loi!

Em outro texto, Satanás ocupa o lugar que aqui corresponde ao segundo. À suas possessões, corresponde sem dúvida também o "antro taciturno", em que o poema "Le Jeu" coloca as vítimas do jogo de azar.

Voilà te noir tableau qu'en un rêve nocturne Je vis se dérouler sous mon oeil clarvoyant. Moi-même, dans un coin de l'antre taciturne, Je me vis accoudé, froid, muet, enviant, Enviant des ces gens Ia passion tenace.

O poeta não participa do jogo. Permanece num canto; e não é mais feliz que eles, os jogadores. É também um homem des­pojado de sua experiência, um moderno. Mas ele recusa o nar­cótico com que os jogadores procuram apagar a consciência, que os pôs sob a custódia do ritmo dos segundos.

Et mon coew s'effraya d'envier maint pauvre homme

Courant avec ferveur à 1'abime béant,

Et qui, soul de son sang, préférerait em somme

La douleur à Ia mott et 1'enfer au néant.

Nestes últimos versos, Baudelaire faz da impaciência a essên­cia da fúria do jogo. Encontra-a em si mesmo, em estado puro. Sua cólera repentina tem a expressividade da "Iracundia" de Giotto, em Pádua.

X

Se acreditarmos em Bergson, é a atualização da durée que tira ao homem a obsessão do tempo. Proust compartilha desta fé, e dela deduziu os exercícios com os quais buscou durante toda a vida trazer à luz o passado, saturado de todas as reminiscên-cias que o impregnaram durante sua permanência no inconsciente. Proust foi um leitor inigualável das "Fleurs du Mal"; porque sen­tia em ação, neste livro, algo afim. Não há familiaridade possível com Baudelaire, que não se encontre na experiência baudelairia-na de Proust.

O tempo — escreve Proust — encontra-se em Bau­delaire desintegrado de maneira desconcertante; so­bressaem uns poucos dias apenas, e são dias significativos. Assim, explica-se que se encontrem nele, com freqüência, formas de dizer tais como "quando uma noite" ou similares.

Estes dias significativos são os do tempo que realiza, falando-se nos termos de Joubert. São os dias da lembrança. Não se dis­tinguem por nenhuma experiência vivida; não estão em companhia de outros, mais sim destacam-se do tempo. Aquilo que constitui seu conteúdo, foi fixado por Baudelaire no conceito de "correspon-dance". Este conceito está ligado ao da "beleza moderna".

Deixando de lado a leitura erudita sobre as correspondances (patrimônio comum dos místicos, e que Baudelaire encontrou em Fourier), Proust nem sequer presta muita atenção às variações artísticas do argumento, representadas pelas sinestesias. O impor­tante é que as correspondances fixam um conceito de experiência que retêm em si elementos de culto. Somente apossando-se destes elementos, Baudelaire podia valorar plenamente o significado da catástrofe da qual ele, como moderno, era testemunha. Só assim podia reconhecê-la como o desafio lançado unicamente a ele, e por ele aceito nas "Fleurs du Mal". Se verdadeiramente existe neste livro uma arquitetura secreta, que tem sido objeto de tantas es­peculações, o ciclo de poemas que inicia o volume, poderia estar dedicado a algo irremediavelmente perdido. A este ciclo perten­cem dois sonetos idênticos em seus temas. O primeiro, que tem por título Correspondances, começa assim:

La Nature est un temple ou de vrvants piliers Laissent paríois sortir de coníuses paroles; L'homme y passe à travers des fôrets de symboles Qui 1'observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se coníondent

Dans une ténébreuse et proíonde unité,

Vaste comme Ia nuit et comme Ia clarté,

Les pariums, les couleurs et les sons se répondent.

O sentido que Baudelaire dava a estas correspondances pode-se definir como o de uma experiência que busca estabelecer-se, protegida de toda crise. Esta experiência só é possível no âmbito cultural. Quando sai deste âmbito, assume o aspecto do belo. No belo, manifesta-se o valor cultuai da arte.

As correspondances são as datas da lembrança. Não são datas históricas, e sim, datas da pré-história. O que faz grandes e sig­nificativos aos dias de festa é o encontro com uma vida anterior. Baudelaire o estabeleceu num soneto que se chama precisamente "La Vie Antérieure". As imagens das grutas e das plantas, das nuvens e das ondas, evocadas no início deste soneto, surgem da cálida névoa das lágrimas, que são lágrimas de saudade. "O via­jante, contemplando essas latitudes veladas pelo luto, sente subir a seus olhos lágrimas histéricas, hysterical tears, escreve Baude­laire comentando a poesia de Marceline Desbordes-Valmore. Cor­respondências simultâneas, como foram cultivadas em seguida pelos simbolistas, não existem. O passado murmura nas correspondên­cias; e sua experiência canônica tem lugar, também, numa vida anterior:

Les houles, en roulaní les images dea cieux, Mêlaient d,une façon solennelle et mystique Les tout-poissants accords de leur riche musique Aux couleurs du couehant reílété par me yeux. Cest là que j'ai vécu...

O fato de que a vontade restauradora de Proust permaneça encerrada dentro dos limites da existência terrestre, enquanto que Baudelaire tende a superá-la, pode ser considerado como sintoma da maior originalidade e violência com que as forças hostis ma­nifestam-se em Baudelaire. E talvez não tenha chegado nunca a algo tão perfeito como quando vencido por tais forças parece ceder à resignação: "Recueillement" traça sobre as profundezas do céu as alegorias dos anos passados:

. . . Vois se pencher les défuntes Années Sur les balcons du ciei, en robes surannées.

Nestes versos Baudelaire contenta-se em" render homenagem ao imemorável que se lhe escapa, mediante o passar de moda. Proust pensa nos anos que aparecem na sacada, fraternalmente dedicados aos de Combray, quando no último volume de sua obra volta à experiência que lhe tinha proporcionado o sabor de uma madeleine.

Em Baudelaire... estas reminiscências, ainda mais numerosas, são evidentemente menos casuais e portan­to, no meu entender, decisivas. É o poeta mesmo quem, com maior seletividade e indolência, persegue delibe-radamente no cheiro de uma mulher, por exemplo, no perfume de seus cabelos e de seus seios as analogias inspiradoras que lhe dão portanto "o imenso azul do céu" o "um porto cheio de chamas e mastros".

Estas palavras são como uma epígrafe involuntária da obra de Proust. A obra de Proust é semelhante à de Baudelaire, que co­lecionou os dias da lembrança num ano espiritual.

Mas as "Fleurs du Mal" não seriam o que são se nelas do­minasse apenas este achado. O que as torna inconfundíveis é muito mais o fato de que à ineficácia da mesma consolação, à queda na mesma paixão, ao fracasso da mesma obra soube arrancar poemas que não são em absoluto inferiores àqueles nos quais as correspon-dances celebram suas festas. O livro "Spleen et Ideal" é o pri­meiro do ciclo das "Fleurs du Mal". O ideal proporciona a força da lembrança; o spleen opõem-lhe a horda dos segundos. Ele é o seu imperador, como o Demônio é o imperador das moscas. À série de poemas do "Spleen" pertence Le gout du néant, onde se diz:

Le Printemps adorable a perda son odeur!

Neste verso Baudelaire diz algo extremo, com extrema dis-creção; isto o torna inconfundivelmente seu. O afundar-se, total­mente, no âmago da experiência, da qual num tempo anterior, par­ticipou, é reconhecido na palavra perdu. O aroma é o refúgio ina­cessível da memóire involontaire. Dificilmente ela se associa a re­presentações visuais; entre as impressões sensíveis costuma acom­panhar um mesmo aroma. Se ao reconhecimento de um aroma, mais do que qualquer outra lembrança, cabe o privilégio de con­solar, isto se deve talvez a que esse reconhecimento adormece pro­fundamente a consciência do tempo. Um perfume faz voltar anos inteiros através do perfume que recorda. Isto é o que torna infi­nitamente desconsolado este verso de Baudelaire. Para quem não pode ter mais uma experiência, mão há consolo. Porém é justa­mente esta incapacidade o que constitui a essência íntima da có­lera. O encolerizado "não quer sentir nada"; seu arquétipo, Timão, lança-se contra todos os homens sem distinção; já não pode dis­tinguir o amigo de confiança do inimigo mortal. D'Aurevilly viu com profunda sagacidade este aspecto em Baudelaire; definiu-o como "Timão com o gênio de um Arquíloco". A cólera mede, se­gundo seus fins, o ritmo dos segundos, ao qual está submetido o melancólico.

Et le Temps m'engloutit minute par minute Comme Ia neige immense um corps pris de roideur.

Estes versos seguem, imediatamente, aos citados antes. No spleen o tempo é objetivado; os minutos cobrem o homem como flocos de neve. Este tempo carece de história, da mesma forma que o da mémoire involontaire. Porém ino spleen a percepção do tempo acha-se sobrenaturalmente aguçada; cada segundo encon­tra a consciência disposta a aparar seu golpe.

O cálculo do tempo que superpõe sua uniformidade à durée, não pode evitar contudo, deixar-lhe fragmentos desiguais e privi­legiados. Foi mérito dos calendários unir o reconhecimento da qua­lidade à medição da quantidade, enquanto deixam em branco, por assim dizer, nos dias de festa, os espaços da lembrança. O homem que perde a capacidade de ter experiências, se substrai, sente-se excluído do calendário. O cidadão conhece esta sensação nos dias de domingo. Baudelaire já a expressa, avanf Ia lettre, em um doa poemas de Spleen.

Des cloches tout à coup aautent avec turie Et lancent vers le ciei un afíreux huilement, Ainsi que dea esprits errants et sans patrie Qui se merrent à geindre opiniâtrement.

Os sinos, antigamente ligados aos dias festivos, são, como os homens, excluídos do calendário. Assemelham-se às pobres almas, que se agitam muito mas que não têm história. Enquanto que Baudelaire, no "Spleen" e em "La Vie Antérieure", mantém o domí­nio sobre os elementos dissociados da verdadeira experiência his­tórica, Bergson, em seu conceito da durée, afastou-se considera­velmente mais da história. "O metafísico Bergson escamoteia a mor­te". O que separa a durée bergsoniana da ordem histórica (bem como da ordem pré-histórica), é o fato de que nela foi suprimida a morte. O conceito bergsoniano de action tem o mesmo caráter. O "saudável bom senso" em que sobressai o "homem prático", foi-lhe dado com o batismo. A durée, na qual foi suprimida a morte, tem a infinitude má de um ornamento. Exclui a possibilidade de poder acolher a tradição18. É o protótipo de uma "experiência vivida", que se exibe nas roupas da experiência. O spleen, em troca, expõe a "experiência vivida" na sua nudez. Com espanto, o melancólico vê a terra caída no estado de nudez da natureza. Nenhum alento de pré-história a circunda. Nenhuma aura. Deste modo, aparece nos versos de "Le Gout du Néant", que vêm ime­diatamente depois dos anteriormente citados;

Je contemple d'en haut le globe en sa rondeur, et je n'y cherche plug 1'abri d'une cahute.

XI

Ao se definirem as representações radicadas na mémoire invo-lontaire, que tendem a agrupar-se em volta de um objeto sensí­vel como aura desse objeto, a aura que rodeia a um objeto sen­sível, corresponde, exatamente, à experiência que se deposita como exercício num objeto de uso. Os procedimentos fundados na má­quina fotográfica e nos mecanismos análogos sucessivos, ampliam o âmbito da mémoire involontaire; fazem-na possível na medida em que mediante uma máquina permitem fixar um acontecimen­to, visual e sonoramente, na ocasião em que se deseje. Tornam-se assim conquistas fundamentais de uma sociedade na qual o exer­cício se atrofia. A daguerreotipia tinha para Baudelaire algo de espantoso e perturbador. Define seu atrativo como "surpreenden­te e cruel". E isto porque, apesar de não se haver aprofundado nela, intuiu a relação da qual acabamos de falar. Como sempre procurou reservar um lugar para o moderno e indicá-lo, sobretudo na arte, assim o fez também em relação à fotografia. Cada vez que a sentia ameaçadora, tratava de culpar por isto a seus "pro­gressos mal entendidos". Neste caso, via-se forçado a admitir que tais progressos eram facilitados pela "estupidez da grande massa".

Esta massa aspirava a um ideal que fosse digno dela e conforme sua natureza... Um deus vingador escutou suas orações e Daguerre foi seu profeta.

Entretanto Baudelaire procura assumir uma atitude mais conci­liadora. A fotografia pode apossar-se tranqüilamente das coisas ca-ducas, que têm direito a "um lugar nos arquivos de nossa me­mória", contanto que se detenham "ante os domínios do impalpá-vel e do imaginário": ante o domínio da arte, de "tudo o que existe somente pela alma que o homem lhe agrega". É difícil con­siderar salomônico este veredito. A constante disponibilidade da lembrança voluntária, discursiva, que se vê favorecida pela técni­ca da reprodução, reduz o âmbito da fantasia. A fantasia pode, talvez, ser concebida como a capacidade de formular desejos de tipo especial: aquele que se pode considerar satisfeito mediante "algo belo". As condições de tal satisfação foram também defini­das por Valéry:"

Reconhecemos a obra de arte pelo fato de que nenhu­ma idéia que suscita em nós, nenhum ato que nos su­gira pode esgotá-la ou dar-lhe fim. Podemos aspirar tanto quanto queiramos uma flor, agradável ao olfato: não chegaremos nunca a esgotar esse perfume, cujo gozo renova a necessidade; e não há lembrança pen­samento ou ação que possa anular seu efeito ou libe­rar-nos inteiramente de seu poder. Esse é o fim que persegue aquele que deseja criar uma obra de arte.

Segundo esta definição, um quadro reproduziria de um espetá­culo, aquilo de que o olho não poderá jamais saciar-se. Aquilo me­diante o qual a obra de arte satisfaz o desejo, que se pode pro­jetar retrospectivamente sobre sua origem, seria algo que ao mes­mo tempo nutre de forma contínua esse desejo. É claro portanto o que separa a fotografia do quadro, e pelo qual não pode existir mais que um só princípio formal, válido para ambos: para o olhar que não pode saciar-se nunca com um quadro, a fotografia signi­fica o que é o alimento para a fome ou a bebida para a sede.

A crise da reprodução artística que assim se delineia pode se considerar como parte de uma crise da própria percepção. O que torna insaciável o prazer do belo é a imagem do mundo ante­rior, que Baudelaire considera velada pelas lágrimas da saudade. "Ah, em tempos longínquos tu foste minha irmã ou minha mu­lher!": esta confissão é o tributo que o belo como tal pode exigir. Enquanto a arte vê o belo e o "reproduz", por mais simples que esta reprodução seja, o reevoca (como Fausto e Helena), das pro­fundezas do tempo. Isto não acontece nunca na reprodução téc­nica. (Nela o belo não tem lugar algum). Quando Proust acusa insuficiência e a falta de profundidade das imagens que a mé-moire volontaire oferece-lhe de Veneza, escreve que apenas ante a palavra "Veneza" este repertório de imagens aparece-lhe vazio e insípido como uma coleção de fotografias. Se se descobre a ca­racterística das imagens que afloram na mémoire involontaire no fato de que possuem uma aura, é preciso dizer que a fotografia desempenha um papel decisivo no processo de "a decadência da aura". O que na daguerreotipia devia ser sentido como desumano, e diria até como assassino, era a circunstância de que o olhar de­via dirigir-se para a máquina (e além do mais, durante muito tempo), enquanto que a máquina tomava a imagem do homem, sem devolver-lhe sequer um olhar. Porém no olhar se acha implí­cita a espera de ser recompensado por aquilo em direção ao qual se dirige. Se esta espera (que no pensamento pode associar-se tão bem a um olhar intencional de atenção e um olhar no sentido li­teral da palavra) se vê satisfeita, o olhar obtém, em sua pleni­tude, a experiência da aura. "A percepção — diz Novalis — é uma atenção". A percepção da qual fala não é outra senão a da aura. A experiência da aura repousa portanto sobre a transferência de uma reação, normal na sociedade humana, à relação do inanimado ou da natureza com o homem. Quem é olhado ou se crê olhado levanta os olhos. Experimentar a aura de um fenômeno sig­nifica dotá-lo da capacidade de fazer com que se levante o olhar. Isto se vê confirmado pelas descobertas da mémoire involontaire. (Estas são, ademais, irrepetíveis: fogem à lembrança que busca penetrá-las. Assim vêm apoiar um conceito de aura, segundo o qual esta é "a manifestação irrepetível de uma distância". Esta definição tem o mérito de descobrir o caráter cultuai do fenôme­no. O essencialmente distante é inacessível: a inacessibilidade é uma característica essencial da imagem, do culto. É inútil subli­nhar o quanto Proust estava compenetrado do problema da aura. Porém sempre vale a pena assinalar que se refere iticidentalmente a tal problema com conceitos que. implicam a teoria deste: "Cer­tos amantes do mistério querem acreditar que nos objetos fica algo dos olhares que os roçam" (ou seja a capacidade de responder).

Acreditam que os monumentos e os quadros apresen­tam-se apenas sob o véu delicado que teceram sobre eles o amor e a devoção admiradores no transcorrer dos séculos. Esta quimera — conclui Proust evasivamente — transformar-se-ia em verdade se se referisse- apenas à realidade existente para o indivíduo, quer dizer, a seu próprio mundo sentimental.

Análoga, mas orientada no sentido objetivo, e portanto capaz de levar mais longe, é a descrição que Valéry faz da percepção em sonhos como caracterizada pela aura:

Quando digo: vejo esta coisa, não interponho uma equação entre mim mesmo e a coisa... No sonho, em troca, subsiste uma equação. As coisas que vejo me vêm como eu as vejo.

Também é onírica a percepção da natureza dos templos, da qual se diz:

L'home y passe à travers des íorêts de symboles Qui L'observent avec des regards familiers.

Quanto mais se dá conta Baudelaire deste fato, mais clara­mente se percebe a decadência da aura em sua poesia. Isto acon­teceu em forma de uma cifra, que se encontra em quase todos os momentos das "Fleurs du Mal", em que o olhar emerge ao olho humano. (É evidente que Baudelaire não a usou de forma deliberada). Consiste no fato de que a espera dirigida ao olhar do homem se vê decepcionada. Baudelaire descreve olhos dos quais se poderia dizer que perderam a capacidade de olhar. Mas esta propriedade dota-os de um atrativo do qual se nutriu em ampla, e talvez na maior parte, a economia de seus instintos. Em Bau­delaire, sob a fascinação destes olhos, o sexo emancipou-se de Eros. Se os versos do "Selige Sehnsucht"

Nenhuma distância te faz difícil

Vir voando e apaixonada

são considerados como a descrição clássica do amor, saturado da experiência da aura, dificilmente se pode encontrar em toda a poesia lírica versos que se lhes aproximem de maneira mais de­finida que os de Baudelaire:

Je t'adore à 1'égal de Ia voute nocturne,

Ô vase de tristesse, ô grande Ticiturne,

Et t'aime d'autant plus, belle, que tu me fuis,

Et que tu me parais, ornement de me nuits,

Plus ironiquement accumuler /es lieues

Qui séparent mes bras des immensités bleues.

Poder -se-ia dizer que é tanto mais subjugante um olhar quan­to mais profunda é a ausência de quem olha. Nos olhos que se limitam a refletir, esta ausência permanece intacta. E isto porque estes olhos não conhecem a distância. Sua lucidez foi incluída por Baudelaire em uma rima engenhosa:

Plonge tes yeux dans les yeux íixes

Des Satyresses ou des Nixes.

Sátiros e náiades já não pertencem à família dos seres hu­manos. São seres à parte. É significativo que Baudelaire tenha introduzido na poesia o olhar cheio de lonjura como regard fa-milier. Ele, que não criou uma família, deu à palavra familier uma textura cheia de promessas e de renúncia. Caiu prisioneiro de olhos sem olhar e se entrega, sem ilusões, a seu poder.

Tes yeux, ilumines ainsi, que des boutiques Et des ifs ilamboyantes dans le fêtes publiques, Usent insolemment d'un pouvoir emprunté.

Baudelaire escreve num de seus primeiros artigos:

A cbtusidade é com freqüência um ornamento da be­leza. Graças a ela os olhos são tristes e transparentes como poços negros ou têm a calma oleosa dos mares tropicais.

Se nestes olhos existe uma vida, é a da fera que sente o perigo enquanto olha à sua volta à procura de uma presa. Da mesma forma a prostituta, enquanto atende aos que passam, cuida-se da polícia. Baudelaire reconheceu nos esboços dedicados por Guys à prostituta, o tipo fisionômico produzido por este gênero de vida. "Dirige o olhar ao horizonte como o animal de caça; a mesma instabilidade, a mesma distração indolente, mas também, de sú­bito, a mesma atenção repentina". É evidente que o olho dos habitantes das grandes cidades encontra-se sobrecarregado por ati­vidades de segurança. Menos notório é outro requisito, ao qual se acha submetido, e de que fala Simmel:

Quem vê sem ouvir encontra-se muito. . . mais preo­cupado do que quem ouve sem ver. Isto é caracterís­tico das . . . grandes cidades. As relações recíprocas entre os homens das grandes cidades. . . distinguem-se por um acentuado prevalecimento da atividade da visão sobre a da audição. A causa principal disto são os veí­culos públicos. Antes da aparição dos ônibus, dos trens e dos bondes no século dezenove, as pessoas não se haviam encontrado nunca na situação de ter que per­manecer, durante minutos e até horas inteiras, olhan-do-se cara a cara, sem dirigir-se a palavra.

O olhar desperto para a segurança carece do abandono so­nhador da distância. E pode chegar a experimentar um prazer na humilhação da distância. Neste sentido, talvez se deva ler as curiosas afirmações que se seguem, quando Baudelaire examina no Salão de 1859, as paisagens para concluir com esta confissão:

Queria voltar aos dioramas, cuja magia enorme e bru­tal impõem-me uma útil ilusão. Prefiro contemplar um cenário de teatro, onde acho, expressados artisticamen­te e com trágica concisão, meus sonhos mais queridos. Estas coisas, sendo falsas, encontram-se infinitaments mais próximas do verdadeiro; enquanto que a maior parte de nossos paisagistas mentem justamente porque se esquecem de mentir.

E gostaríamos de acentuar, mais que sobre a "útil ilusão", sobre a "trágica concisão". Baudelaire insiste sobre a fascinação da dis­tância, e julga a paisagem diretamente segundo os cânones das pinturas das barraquinhas de feira. Quer talvez ver destruído o encanto da distância, como ocorre ao espectador que se aproxima demasiado de um cenário? Este tema aparece num dos grandes versos das "Fleurs du Maf:

Le Plaisir vapoweux fuira vers Vhorízon Ainsi qdune sulphide au íond de Ia coulisse.

XII

As Fleurs du Mal são as últimas obras de poesia lírica qua obtiveram uma ressonância européia; nenhuma obra posterior trans­pôs os limites de um círculo lingüístico mais ou menos restrito. A isto se deve acrescentar que Baudelaire deixou jorrar sua capaci­dade criadora quase exclusivamente neste livro. E não se pode ne­gar que alguns de seus temas, sobre os quais falamos no presente estudo,tornam problemática a possibilidade mesma da poesia lí­rica. Esta tríplice comprovação, define historicamente Baudelaire. Mostra que se manteve irredutivelmente em seu posto; que era irredutível na consciência de sua tarefa. Chegou a ponto de defi­nir como seu fim "a criação de um modelo". Via nisto a condi­ção de todo poeta lírico futuro. Desdenhava a todos os que não demonstravam encontrar-se à altura desta exigência. "O que be-beis? Caldo de ambrosia? O que corneis? Bifes de Paros? Quan­to lhes dão no penhor por uma crítica,". O poeta lírico com auréo-la é para Baudelaire antiquado. Baudelaire mesmo outorgou-lhe uma parte de comparsa num trecho em prosa, intitulado "Parte d'Auréole",.

Como? Você aqui, meu amigo? Você num lugar de má fama? Você, o bebedor de quintessências! Real-mente, surpreende-me.

— Meu amigo, você conhece meu pavor por cavalos e carruagens. Há pouco, quando atravessava a rua à toda, saltando na lama, através desse caos em movi­mento, onde a morte chega a galope de toda a parte, ao mesmo tempo, minha auréola, devido a um movi­mento brusco, deslizou-me da cabeça para a lama do asfalto. Não tive a coragem de apanhá-la. Considerei menos desagradável perder minhas insígnias do que ter estraçalhado todos os meus ossos. E ademais, disse-me, a desdita tem sua utilidade. Agora posso passear incógnito cometer ações vis e entregar-me à libertinagem como simples mortal. Eis-me aqui, tal como me vê, idêntico a você!

Deveria ao menos pôr um anúncio sobre essa auréo-la, ou pedir ao comissário que a recupere.

Homem. Não. Encontro-me bem aqui. só você re-conhecLU-me. Ademais a dignidade aborrece-me. E penso com alegria que algum mau poeta recolheu-a e a colocará na cabeça impudicamente! Fazer alguém feliz, que alegria! E sobretudo, alguém que me fará rir! Pense em X ou em Z! Heim! Que engraçado será!

O mesmo tema reaparece nos diários; mas a conclusão é di­ferente. O poeta apressa-se em recolher a auréola; porém sente-se perturbado pela sensação de que se trata de um incidente de mau agouro.

O autor destes esboços não é um flânuer Expressam ironi­camente a mesma experiência que Baudelaire nos confidencia ao passar, sem qualquer enfeite, no fragmento que se segue:

Perdu dana ce vilain monde, coudoyé par les íoules, je suis comme un homme lassé dont 1'oeil ne voit en arrière, dans les années proíondes, que desábuse-ment et amertume, et, devant lui, qu'un orage oú rien de neuf n'est contenu, ni enseignement ni douleur.

Ter estado atento aos empurrões da multidão é a experiên­cia que Baudelaire — entre todas as que fizeram de sua vida o que ela foi — toma como decisiva e insubstituível. A aparência de uma multidão vivaz e em movimento, objeto da contemplação do flâneur, dissolveu-se ante seus olhos. Para compenetrar-se melhor de sua baixeza, imagina o dia em que inclusive as mulheres per­didas se pronunciarão por uma conduta ordenada, condenarão.a libertinagem e já não admitirão nada que não seja dinheiro. Traí­do por estes últimos aliados, Baudelaire vira-se contra a multi­dão. E o faz com a cólera impotente daquele que se lança con­tra o vento ou a chuva. Aqui está a "experiência vivida" à qual Baudelaire deu o peso de uma experiência. Mostrou a que preço se conquista a sensação da modernidade: a dissolução da aura através da "experiência" do choque. A compreensão de tal disso­lução custou-lhe caro. Mas é a lei de sua poesia. Sua poesia bri­lha no céu do Segundo Império como "um astro sem atmosfera".